sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Trainspotting

Desde que comecei as lides laborais que me deslocava até ao local onde ia diariamente morrer mais um bocadinho durante pelo menos oito horas em transporte próprio, saboreando logo de manhãzinha a maravilha que é conseguir fazer um trajecto de 20 minutos em uma hora e meia.

Uma vez conseguindo chegar ao local pretendido seguia-se uma busca de aproximadamente meia hora para conseguir um espaço numa cratera de terra batida - de onde não tinha garantia de conseguir tirar o carro ao fim do dia se as condições meteorológicas nos brindassem com uma chuvita por mais ligeira que fosse.

Após as voltas e contravoltas, teria que dar uma pequena atençãozinha monetária à família de emigrantes que se encontrava em posse daquele espaço porque todos têm que ganhar a vida, nem que seja estando sentados no Merecedes que possuem e acercando-se de nós apenas na altura em que fechamos o carro dizendo que fizemos um excelente trabalho a estacionar.

Tantas foram as vezes que me deparei com a viatura de molho em meio metro de água que considerei inscrição no Benfica para salto à vara.

Após anos a começar o dia desta forma bem gostosa, decidi dar uma hipótese aos transportes públicos.

Senti a bênção de ir do ponto A ao ponto B em 15 minutos, tendo sítio para estacionar sem que estivesse sob a jurisdição dos temidos e odiados Emel’s. Ao fim ao cabo a Emel é uma espécie de arrumador mas de fato engomado e gravatinha que em vez de nos dizer que nos riscam o carro até à chapa, no-lo levam só a dar uma voltinha até onde quer que seja que é a toca deles, ao estilo de ATL para os miúdos que os pais não podem ir buscar a horas.
Lançaram até publicidade! Came on! “Nós extorquimos dinheiro dos desgraçados que têm de se deslocar para o trabalho de carro porque não têm uma rede de transportes que sirva as suas necessidades”- devia ser o lema deles e não o “Há 15 anos que a EMEL trabalha para que ninguém estacione a sua vida”. É quase uma lavagem cerebral ao estilo “Vou atropelar-te deliberadamente, mas para te mostrar que se deve sempre olhar para ambos os lados na passadeira - é para o teu bem”.

Quando decidi readquirir a minha sanidade mental abstendo-me de conduzir no centro em hora de ponta, constatei que não só poupava tempo como podia pôr a minha leitura em dia e fazer um pouco de jogging nas escadarias das estações que normalmente se encontravam fora de serviço.

Tudo eram rosas até chegar Setembro. As outrora pouco frequentadas carruagens passaram a estar bem recheadas de gente.

Já disse que não gosto de gente? Quanto maior a concentração maior a probabilidade de serem desagradáveis e até ofensivas de alguma forma. Todos somos irritantes à nossa maneira. Eu sei que sou. Se fosse algum dos meus colegas provavelmente já me teria abatido a tiro por conseguir levar um dia inteiro – até semanas – a cantarolar aqueles 5 primeiros segundos de uma publicidade qualquer. Mas como tenho comigo uma relação de casal septuagenário em que o que digo ou não é ouvido ou não tomado em conta, sobrevivo à convivência 24/7 com a voz que vive na minha cabeça.

É extraordinário como algumas habilidades que possuímos e que aparentemente nos parecem sem qualquer utilidade mais tarde ou mais cedo acabam por vir a fazer sentido. No meu caso em específico é a capacidade de conter a respiração durante longos períodos de tempo. Garantiu-me algumas medalhas de natação mas acima de tudo a sobrevivência no ambiente pouco ventilado de uma carruagem nas imediações de uma pessoa que exala um odor corporal às 8 da manhã de um balneário cheio de equídeos. Como é possível? Diz-me a intuição que tal paleta de odores poderia apenas ser adquirida após semanas de apurado refogado sudorífero.

E depois há aqueles que nos decidem brindar durante a viagem com o último “som” que sacaram da Jamba. Digo “som”, porque é assim que a “malta jovem” (e acéfala) como é um exemplo vivo a criatura que consome espaço no andar de baixo do meu. Ao fim ao cabo é um som mas se virmos bem um comboio a descarrilar também. Não percebi esta moda de levar a merda do telemóvel a poluir auditivamente o espaço alheio. Será que o facto de trazerem as calças ao meio das pernas de alguma forma lhes corta a circulação ao cérebro impedindo-os de perceber que os fones foram inventados por algum motivo?

Nos 80’s houve um fenómeno semelhante com rádios tijolo e calças MC Hammer style, agora temos ruído “kururesco” dos “móveis” de pessoal branco com problemas de identidade cultural que tende a desenvolver um andar característico de uma deficiência locomotiva e gravidez adolescente.

O que me consola é saber que à semelhança do Hammer com o seu look copiado por tantos na altura, é simplesmente ridículo visto aos olhos de hoje, bem como as permanentes esvoaçantes de bandas de Rock. Da mesma maneira que escondo bem no fundo de gavetas as provas que algum dia usei calças com elástico no pé e camisas de ganga com flores bordadas, também eles um dia sentirão a vergonha de terem sido os ridículos do seu tempo com a bela da bolsinha de cintura – no pescoço!

Descobri também que as pessoas estão prontas para a guerra não só atrás do volante de um carro mas também a convergir para o transporte. Até mesmo a velhinha com o ar mais doce deste mundo se torna num wrestler capaz de nos aplicar um rotativo nos dentes se alguém lhe tentar passar à frente.

Parece que afinal o senhor Darwin estava errado em relação à cena toda da evolução – com a nossa espécie, pelo menos. É uma selva lá fora.